da heróica fuga de 3 de Janeiro de 1960
Momento decisivo na luta contra<br>o fascismo
O Forte de Peniche acolheu, no dia 3, a evocação dos 55 anos da fuga de Janeiro de 1960, que devolveu à liberdade e à luta revolucionária Álvaro Cunhal e outros nove destacados dirigentes e militantes do PCP.
A preparação das fugas era expressão da luta que se travava nas prisões
«Ao comemorarmos o 55.º aniversário dessa histórica fuga, destacaremos não só o que ela significou para o PCP – reforço do núcleo dirigente, correcção da linha política, eleição de Álvaro Cunhal como Secretário-geral do Partido (em Março de 1961), crescimento das fileiras e maior intervenção geral do Partido, reforço da luta de massas –, mas destacaremos igualmente aspectos fundamentais da organização, responsabilização, trabalho colectivo e sua compartimentação, que possibilitaram a realização com êxito da fuga», sublinhou Manuela Bernardino, do Secretariado, a quem coube intervir na sessão do passado sábado, promovida pela Direcção da Organização Regional de Leiria do PCP.
Lembrando que, para os comunistas, a luta «não terminava no momento da prisão», Manuela Bernardino realçou que, pelo contrário, a prisão significava o início de uma «nova fase, em condições particularmente duras, em que os presos se encontravam sós face ao inimigo, primeiro enfrentando as torturas, depois o isolamento, e após os julgamentos-farsa em tribunais especiais, eram condenados a longas penas», na maioria dos casos cumpridas ali mesmo, no Forte de Peniche. Daí a sua transformação numa prisão de alta segurança, lembrou.
Após recordar as obras realizadas na década de 50, para «garantir um maior isolamento dos presos e um mais eficaz controlo dos carcereiros sobre eles», a dirigente comunista referiu-se ao «regime prisional severo, cruel, vexatório, frequentemente brutal» que vigorou em Peniche durante décadas. Este regime encontrava-se, aliás, plasmado no próprio regulamento da cadeia, onde se explicitava que o preso «deve sentir-se sempre sob o olhar vigilante do guarda».
Apesar disso, valorizou, «os comunistas e outros democratas resistiram e lutavam contra as arbitrariedades e prepotências dos carcereiros, defendendo a sua dignidade e direitos». Muitas das lutas travadas no interior da prisão resultaram em cedências por parte da direcção da cadeia, permitindo aos presos conquistar alguns direitos, salientou Manuela Bernardino.
Persistência, serenidade e coragem
De entre as diferentes formas de resistência na prisão, realçou a dirigente do Partido, estava o estudo de possibilidades de fuga. Para os principais quadros e militantes do PCP, esta era uma tarefa necessária para, «uma vez alcançada a liberdade, poderem prosseguir a luta contra o fascismo, pela libertação do povo português», pelo que foram muitos os que a ela se dedicaram, ao longo dos anos, com «entusiasmo, ponderação, serenidade e coragem».
No caso concreto da fuga de 3 de Janeiro de 1960, ela começou a ser preparada com meses de antecedência, revelou Manuela Bernardino: «Ter-se-á iniciado em meados de 1959», com a atribuição, a um organismo restrito, da «tarefa de estudar hipóteses, riscos e possibilidades de concretização de uma fuga». Este, composto por Álvaro Cunhal, Jaime Serra e Joaquim Gomes, chegou à conclusão de que a concretização de uma fuga exigiria a colaboração ou aliciamento de um guarda prisional ou de um GNR, uns e outros proibidos de «estabelecerem conversas com os presos, particularmente aqueles que faziam a vigilância exterior, ou seja, os GNR».
Um dia, lembrou a dirigente do Partido, «com surpresa, há um GNR que sorri, que mais tarde responde a um cumprimento, que dá nota do seu descontentamento e de ser perseguido na sua carreira profissional». Aproveitando a abertura concedida pelo agente da GNR, é-lhe proposto que alguém do exterior fale com ele, algo que acaba por aceitar, apesar dos receios. Dessa conversa, mantida com um membro do Secretariado do Partido, resulta a aceitação da sua colaboração na fuga, mediante condições – saída para o estrangeiro e apoio financeiro para a família, até que se lhe pudesse juntar –, que o Partido «cumpriu integralmente», valorizou Manuela Bernardino.
Estabelecido o plano de fuga, a coordenação entre o organismo restrito no interior da cadeia e o Secretariado do Partido, no exterior, «foi decisiva para a solução dos diferentes aspectos que se colocavam à sua concretização»: no interior, houve que definir tarefas no piso (neutralizar o guarda e fazer uma corda a partir dos lençóis) e projectar a forma de chegar à muralha da fortaleza e daí saltar para o exterior; do lado de fora, o Secretariado do Partido teve que encontrar os quadros para desempenharem as tarefas relacionadas com a fuga e arranjar os recursos financeiros e meios técnicos necessários.
Trabalho colectivo e dedicação
Qualquer falha na execução do plano, realçou Manuela Bernardino, não poria só em causa o êxito da fuga, como a liberdade dos que se iriam evadir e, eventualmente, «até a vida de alguns». Perante tão grande responsabilidade, acrescentou, «só o trabalho colectivo poderia – como pôde – garantir o sucesso da iniciativa, apesar dos riscos que foi necessário correr», tendo o Secretariado chamado a si aspectos de organização, financeiros e técnicos, e intervindo na própria execução da fuga.
Mas se o trabalho colectivo foi importante para que tudo corresse como planeado, «foi a confiança no Partido, no seu projecto e a total entrega à luta dos que se evadiram e dos que no exterior correram grandes riscos que determinou o seu êxito», garantiu a dirigente, lembrando todos os que, no interior (mesmo os que não fugiram) como no exterior, «cumpriram com as tarefas que lhe estavam atribuídas» e ainda o povo de Peniche, que com o seu silêncio, facilitou a evasão.
Manuela Bernardino recordou ainda as dificuldades e imprevistos surgidos quer durante a preparação da fuga quer mesmo durante a sua execução, «ultrapassados pela experiência e determinação dos quadros nela envolvidos, pela discussão democrática entre eles, pela solidariedade e entreajuda que foi necessária em determinados momentos».
Para que não se esqueça
A sessão de dia 3 realizou-se em plena fortaleza, numa das salas em que está patente a exposição «Forte de Peniche – Local de Repressão, Resistência e Luta», inaugurada há precisamente um ano, na memorável jornada com que culminou as comemorações do centenário do nascimento de Álvaro Cunhal e se iniciou a evocação dos 40 anos da Revolução de Abril. No que diz respeito à mostra, ficou a saber-se que permanecerá mais um ano naquele local, permitindo que muitas mais pessoas fiquem a conhecer melhor a natureza do fascismo e do seu sistema prisional, a coragem e tenacidade dos presos políticos, particularmente dos comunistas, e as audaciosas fugas por muitos deles protagonizadas, com especial destaque para a de 3 de Janeiro de 1960. Os seus protagonistas estão, aliás, destacados num dos painéis da exposição.
Apresentada por Mariana Rocha, do Comité Central e da Direcção da Organização Regional de Leiria do PCP, a sessão evocativa do passado sábado – na qual esteve presente o presidente da Câmara Municipal de Peniche, António José Correia – ficou ainda marcada pela passagem de excertos do DVD editado pela Comissão das Comemorações do Centenário de Álvaro Cunhal sobre a evocação da fuga, realizada naquele local a 3 de Janeiro de 2014.
Com esse filme, foi possível recordar a recriação teatral do jantar dos 10 presos, da imobilização do guarda e da passagem para a muralha, juntamente com a ajuda do outro guarda, a descida da muralha do Forte pelos elementos da Associação Espeleológica de Óbidos (não faltando a queda de um dos presos e a desorientação momentânea do guarda Jorge Alves uma vez chegado à vila), o fogo de artifício que culminou a homenagem e ainda o magnífico poema de João Monge, «A Hora das Gaivotas», magistralmente declamado pela actriz Maria João Luís.
O pianista Manuel Alves e a cantora Elsie Cunha apresentaram um repertório preparado especialmente para a ocasião, com canções relacionadas com a repressão fascista e a resistência do povo português: «Era de Noite e Levaram» e «Por Trás Daquela Janela», de José Afonso, e ainda o «Hino de Caxias», escrito por presos políticos, e «Abandono», de Alain Oulmain e David Mourão Ferreira, mais conhecido por «Fado de Peniche».
A maior de todas as fugas
Se todas as fugas das prisões realizadas por dirigentes e militantes comunistas serviram para reforçar a luta contra o fascismo e pela liberdade, a fuga de Peniche de Janeiro de 1960 teve uma importância suplementar, pela quantidade e importância dos quadros que recuperou, pelo momento em que se realizou e pelo que permitiu, a curto prazo, de reforço do PCP ao nível político, ideológico e organizativo. Não é possível fazer história com base em «ses», mas é certo que sem esta fuga – no momento específico em que se deu – o desenrolar do processo revolucionário português não seria o mesmo.
De facto, na viragem da década de 50 para a de 60 do século XX, o PCP enfrentava inúmeras dificuldades. A repressão e as ilusões que se instalaram no Partido sobre a possibilidade de instaurar um regime democrático em sequência da «desagregação automática» do fascismo levam a um sério refluxo do movimento antifascista – estas foram algumas das consequências do desvio de direita de que desde há alguns anos enfermava a orientação política do Partido, com sérias implicações na sua organização, nomeadamente (mas não só) ao nível do afrouxamento dos cuidados conspirativos.
Na sequência da fuga, desenvolve-se no Partido um intenso debate interno sobre a clarificação da via para o derrubamento do fascismo e visando a defesa do Partido, a política de quadros e o trabalho de organização. Esta discussão culmina em Março de 1961, numa reunião do Comité Central na qual Álvaro Cunhal é eleito Secretário-geral do Partido.
As grandes lutas populares de 1962, a publicação do Rumo à Vitória e a aprovação, no VI Congresso do Partido, do Programa para a Revolução Democrática e Nacional são decorrências da fuga de Peniche e da intensa acção política desenvolvida desde então pelo Partido, com particular destaque para muitos dos intervenientes na epopeia de 3 de Janeiro de 1960. Sabendo que a Revolução de Abril concretizou, nas linhas gerais, os objectivos que o PCP apontou em 1965, fica-se com uma ideia aproximada da importância da fuga de Peniche para a derrota do fascismo e para a conquista da democracia, da liberdade e de um vasto conjunto de direitos políticos, económicos, sociais e culturais.
Documentos históricos
A fuga de Peniche teve eco no Avante! que saiu para a rua nesse mesmo mês de Janeiro de 1960. Na primeira página, publicava-se o comunicado do Secretariado do Comité Central emitido no próprio dia da fuga, intitulado «Álvaro Cunhal, Jaime Serra, Joaquim Gomes, Francisco Miguel, Guilherme de Carvalho, Pedro Soares, Carlos Costa, Francisco Martins, Rogério de Carvalho e José Carlos em liberdade!», no qual se destaca a «coragem e abnegação» revelada pelos 10 comunistas, que possibilitaram a sua libertação.
Saudando «estes valorosos combatentes de vanguarda, alguns dos quais há muito tinham terminado as penas a que foram condenados mas que os opressores salazaristas pretendiam manter indefinidamente presos, através das celeradas “medidas de segurança”», o Secretariado lembrava que permaneciam encarcerados nas prisões fascistas «muitos abnegados patriotas que só pela luta do povo português e pela solidariedade dos povos do muito inteiro serão libertados». A libertação dos 10 dirigentes e militantes do PCP, salientava ainda o comunicado, não era apenas uma «vitória do Partido Comunista, mas de toda a causa anti-salazarista», constituindo ainda um «incentivo ao alargamento da acção de todos os portugueses honrados na luta contra o fascismo e por um Portugal democrático e independente».
Na edição seguinte, publicada na segunda quinzena do mês, o Avante! puxava uma vez mais a fuga para a primeira página, com o título «O nosso povo saúda a libertação de Álvaro Cunhal e dos seus companheiros – defendamo-los das investidas do inimigo!». Nesse texto, referia-se o entusiasmo das massas populares ao tomarem conhecimento da fuga, dando-se conta das manifestações de regozijo nas fábricas, bairros e localidades. Do lado do fascismo mobilizava-se o aparelho repressivo e a «atmosfera de terror e estado de sítio».
Na primeira destas edições foi publicada a mensagem dos 10 protagonistas da fuga, dirigida antes de mais ao Partido e ao povo, na qual afirmam a sua «determinação de os servir, como até hoje, na luta pela instauração em Portugal de um regime de liberdade e legalidade». Nessa mensagem, os militantes comunistas garantiam que sem o auxílio do Partido e da sua direcção, «sem a coragem, o espírito de sacrifício e o apoio de numerosos comunistas e portugueses sem partido que nos ajudaram, não teria sido possível levar a cabo com êxito a nossa libertação». As «provas de simpatia e solidariedade activas» de que foram alvo ao longo de todo o seu encarceramento também foram lembradas.
Histórica é, ainda, a carta de Jorge Alves aos companheiros da GNR, aos quais apela para que não lutassem contra o povo do qual saíram. Publicada parcialmente na obra A Resistência em Portugal, de José Dias Coelho, a carta refere ainda que «era tempo de ajudar aqueles que podem salvar o País. Ajudei a libertar alguns filhos do povo que estavam presos (…) Sinto com isto que dentro das minhas possibilidades e justiça não fiz mais do que um dever e uma obrigação de bom português.»